quinta-feira, 16 de julho de 2015

A dificuldade de parar depois que comecei a andar (e de criar laços)

Permaneci em um só lugar apenas até a 8ª série do ensino fundamental. Foram oito anos praticamente com a mesma turma, os mesmos amigos, infinitas histórias compartilhadas. Só tenho registro fixo até aí. Meu cabelo era grande e de um jeito só. Meu estilo de roupas, também. Minhas músicas, gosto por filmes. Tudo se mantinha. Eu tinha um lugar fixo para morar, eu tinha um animal de estimação fixo, eu tinha até um telefone fixo. Tudo estava perfeitamente encaixado, enquadrado, sendo formado. Até que chega o ensino médio.

A cidade em que eu morava era muito pequena, não oferecia qualidade de ensino o suficiente para uma boa educação pré-vestibular, e lá vou eu para a primeira mudança. Uma cidade vizinha, um pouco maior que a minha, com gente diferente, mas eu estava empolgada. Os professores eram bacanas, minha turma era legal e o melhor, continuava pequena. Éramos uma turma de 10 alunos. O colégio era pequeno e estava quase falindo, mas em qualidade era muito bom. Até que, no fim do ano o colégio fecha. Choro, despedida, finalização. Outra mudança se fez necessária.

Segundo ano do ensino médio, uma cidade maior que a segunda. Uma turma tão grande que precisou se dividir em duas. Aquilo me deixou abismada! Eu nunca imaginei estudar em um colégio tão grande. E lá estava eu, enfrentando, conhecendo, fazendo novos amigos. Fiz grandes amizades, daquelas de passar o fim de semana umas nas casas das outras, compartilhando histórias e confissões, estava tudo indo muito bem. Até que, por uma necessidade que não mais tão minha, tive que me mudar de novo. Choro, despedida, finalização.

Terceiro ano do ensino médio. Uma cidade maior que a terceira, um colégio gigante de três andares. Sem contar a moradia, não era mais fixa. Um quitinete minúsculo, a obrigação de me virar sozinha, o amadurecimento forçado. A saudade dos amigos anteriores, só haviam as cartinhas em uma caixa que eu abria quase toda noite. Ninguém aguentava mais o drama e os choros. Até que em pouco tempo, me adaptei. Fiz amizades, me enturmei. Comecei a me sentir parte daquele lugar, a fazer parte da vida da galera, e a galera parte da minha. Éramos a melhor turma de terceiro ano e a mais difícil, diziam os professores. Esse era o nosso orgulho: ser o terceiro ano B, o sem jeito, mas tínhamos personalidade. Cortei o cabelo, comecei a mudar o gosto musical. Terminado o terceiro ano, por motivos de força maior, não pude permanecer lá. Choro, despedidas, finalização. 

Lá vou eu me mudar. Quinta cidade, menor um pouco que a quarta, ano de cursinho pré-vestibular. O ano que mais me cobrei e fui cobrada, em quase todos os sentidos. Quase não dei conta de mim mesma. Até que, passei no vestibular! Choro, comemoração, início de uma nova fase que prometia grandes resultados! Porém, outra mudança.

Sexta cidade, maior que todas as outras juntas. Universidade. Dessa vez me mudei por motivos meus. Por uma escolha minha. Tudo, absolutamente tudo era novo. Não estava mais apegada a quase nada, se notava até mesmo pelo amor que eu tinha ao meu cabelo grande e a facilidade que eu o cortava. Cheguei a pintar todo de loiro, inclusive. Ah, cresce de novo! Fiz grandes amigos, mas não me apegava mais, deixava-os ir com a mesma facilidade que os aceitava de volta. Era uma pessoa aberta demais, vivia tudo intensamente, já que pela minha experiência, havia um prazo de validade. Os 5 melhores anos da minha vida, diga-se de passagem, e isso poderia ter me prendido àquele lugar para sempre. Mas não o fez. Senti que era hora de ir. 

Sétima cidade, maior um pouco que a ultima. Escolha difícil, aparentemente sem sentido para alguns, confesso que até mesmo pra mim às vezes. Poderia ter ficado no lugar anterior, mais confortável. Mas isto não era mais uma característica minha há muito tempo. O período agora é de pós-graduação e trabalho, que não me promete muita coisa além do que os outros lugares prometiam, mas eu quis pagar pra ver.

Conclusão disso tudo? Escolhas que são apenas parte de um processo. À nenhuma delas eu fui obrigada. Nem iludida. Porém o preço é alto. Hoje eu me vejo em um pequeno apartamento, com fotos em todos os lugares, a maioria de pessoas que não fazem mais parte do meu convívio. E daqui pra frente pode ser que outras se aproximem. E também possam ir embora. Afinal, aprendi que quando me soltei para experienciar minha vida, nada mais me prendeu. Se isso é bom ou ruim? Não sei. Às vezes me alegra, outras vezes me entristece. Mas na maioria das vezes me dá a certeza de que já que sou assim, o jeito é ser. Não faço a menor ideia se é aqui que vou fixar lugar, como diz o poema de Fernando Pessoa:

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: 
"Navegar é preciso; viver não é preciso".

Quero para mim o espírito desta frase, 
transformada a forma para casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar. 
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. 
Só quero torná-la grande, 
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo (e a minha alma) a lenha desse fogo.


Richard Parker - As Aventuras de Pi


quarta-feira, 1 de julho de 2015

Carta aos donos dos meus pertences

Caros colegas assaltantes,

eu sei que vocês não vão ler esta carta, se o fizessem seria algo bem bizarro, mas eu gostaria de externar meus sentimentos de alguma forma. Entendo que, pelo visto, eu trabalho para lhes dar o que é de vocês por direito, só que o susto que eu levei no momento que vieram buscar foi terrível. Vai ser difícil pra caramba ressignificar tudo isso, 5 minutos de contato com vocês se transformarão em uma dor de cabeça de vários dias, quem sabe alguns meses. Sem contar a dificuldade pra recuperar todos os meus documentos, que eu não sei se vocês lembram, foi a única coisa que eu pedi que deixassem. 

Eu percebi que o camarada que não muito delicadamente me "imprensou" na parede cogitou a possibilidade de deixar os documentos. Aliás, dentro da minha bolsa não havia nada que vocês iriam fazer uso, a não ser R$10,00 de resto dos R$20,00 que eu havia pedido emprestado à uma amiga para voltar pra casa pois estava sem dinheiro. Mas a bolsa era grande, eu entendo, chamou-lhes a atenção, deveriam levar, obviamente.

Ah, e o grito não foi intencional. Sei que ficaram irritados, por isso a prensa contra o pescoço, mas convenhamos, é uma reação involuntária que muita gente tem quando sente um susto. De qualquer forma, fico grata por não ter havido algo mais sério, não precisava já que eu sou mulher e estava sozinha na rua. Indefesa. Todo mundo fala que vocês poderiam ter feito coisas mais sérias, como me levar junto na moto (seria meio estranho nós três em uma moto, mas vai que né?), poderiam ter me agredido quando eu gritei porque eu fui sem noção... Ouvi dizer que, quando vocês surgem, a gente tem que ficar quietinha e ter obrigatoriamente algo de valor que compense o trabalho de vocês, se não a gente apanha. Foi compensado. Suponho que por isso vocês não fizeram mais nada. Só o meu celular de R$1200,00 que não havia nem um mês que eu havia comprado foi o suficiente. Ainda bem! Bem material a gente recupera, logo logo esse medo vai passar.

Sem contar que vocês foram os melhores da noite. Ao ir à delegacia fazer o B.O. ouvi tanta história de outros casos praticamente no mesmo horário que o meu, que me fizeram até parar de chorar e rir um pouco. Nós que estamos desse lado beneficiado da história nos encontramos todos no mesmo barco. Afinal, vocês estão do lado dos que têm menos, então nada mais justo do que vir buscar aqui o que aos olhos de vocês, sobra. Infelizmente, levam muito mais que os nossos bens. Comprometem nossa condição psíquica. Não quero entrar mais fundo nesse assunto de quem sofre mais, certo? Há uma razão pra vocês estarem buscando seus pertences com as pessoas que oferecem um acesso mais fácil. Andei sozinha na rua pra quê? Tirei o celular da bolsa na porta do prédio pra quê? Andei com uma bolsa grande que chama atenção pra quê? Estava tão óbvio. Outras pessoas até me falaram depois que agora eu aprendo. Devo aprender.

Longe de mim querer culpá-los por isso, mas em consequência desse contato com vocês eu me sinto sem ter a quem recorrer. Até entendo todos os meus parentes e amigos que dão sermão e falam todos a mesma coisa: "isso passa", "não aconteceu nada", "o que você falaria pra um paciente seu que sentisse a mesma coisa? Você precisa ficar bem", "bem material a gente recupera", "você poderia ter morrido", etc, etc. Mas infelizmente, não sinto que são todos que compreendem a minha necessidade de falar até que isso diminua e se ressignifique dentro de mim. Que saco, não é? Esse mimimi pós assalto. 

No mais, solicito-lhes, do fundo do meu coração, que não voltem por aqui. Façam bom uso dos meus pertences e fico grata por não terem feito o "mais" que todo mundo fala que vocês poderiam fazer.

Atenciosamente,

a guardiã temporária dos pertences que vocês definitivamente levaram.