quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Notas de Consultório I

O quadro
Visitava o consultório, semanalmente, há um ano. No último dia, atentou para a existência do quadro na parede pela primeira vez.


Enfrentamento 
As nossas questões batem na porta.

Tempo
Notou que poucas vezes na vida tem o controle do que pode fazer dentro do seu tempo e, no consultório, passou a enfrentar qualquer um que bata na porta e a interrompa antes do final da sessão.

Liberdade
Ouvi naquele dia “parece que a pessoa que me deixa mais livre é você”. Depois pensei que podia ter respondido: não te entrego nada que você não tenha. Quem está escolhendo ser livre, independente de mim, é você.

Lugar
A sensação que eu tinha era a de que ele trabalhava apenas para manter seu lugar no trabalho.

Colocar-se
Há uma diferença entre ser passivo e não se colocar apenas nas situações que podem causar dor. Ser ativo pode, ainda assim, não promover possibilidade de se colocar.

Empoderamento 
Relatava que no jantar o rapaz julgou sua ação de adotar um bicho de estimação. Para ele, ela havia agido por carência. Ela, um pouco chateada, reagiu apenas se justificando. Refletimos juntas na sessão: quem é ele para saber mais dela do que ela mesma? Saiu naquele dia desejando aprender mais sobre como não precisar se justificar para todo mundo.

Escolhas 
Ninguém escolhe num dia algo que quer que permaneça para o resto da vida. O sim do altar deve ser dito todos os dias. 

Perdas
Aceitá-las, liberta. Negá-las, aprisiona. 

Comunicação 
Ouvia que todos os dias eles se falavam. Até então nunca ouvi que, pelo menos em alguns dias, eles dialogavam. Satisfação não é compartilhamento.

Casamento 
Não podendo mais “fuçar” o celular do companheiro, a paz voltou a reinar.

Desafiar-se
Dizia que não gostava de desafios. Um dia, trocou a brincadeira de casinha por um cubo mágico.

Terapia
Depois de 9 meses frequentando o consultório semanalmente por obrigação, iniciou seu processo de terapia por escolha própria.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Entre o novo e o antigo o que muda é o olhar

Havia viajado algumas, e porque não dizer muitas, vezes por aquela estrada. Usando de recursos comuns, carros pequenos ou vans e tendo alguém que dirigisse o meu caminho, eu pouco olhava pelas janelas. O destino me era comum, porque procurar belezas durante o caminho? 

Ao fazer sempre a mesma viagem, só mantinha meus olhos atentos  quando avistava o destino final. Sem perceber, isso nunca me enriqueceu nem tornou meu caminho mais próprio.
Depois de um longo tempo, tive oportunidade de fazer viagens para outros lugares. Nelas, tendo que dirigir o meu caminho, eu o observava, visto o destino não me ser comum. E pude perceber que novos percursos me moldaram os olhos. Porém mesmo assim, ao voltar aos lugares que já frequentei, eu olhava da mesma forma, ou dormia no percurso. 

Minha vida mudou e depois tive a oportunidade de querer apresentar o que me era conhecido a outra pessoa que comigo viajava. Para ela, tudo era novo e então eu fui me tornando facilitadora do seu caminho. Aqui digo facilitadora porque íamos dirigindo juntos e nos auxiliávamos.

Precisando estar atenta a todo o percurso, eu comecei a apresentar a meu companheiro todos os lugares que meus olhos já haviam visto. Não tomei a sua frente, eu só apontava e ele me apontava o que, no meu caminho comum eu não havia percebido antes. De repente, percebi-me viajando!

Os caminhos que eu já era habituada se tornaram caminhos que me enriqueciam os olhos porque, ao que parece, era importante que o outro visse tudo que me era importante e que, enquanto eu estava sozinha, era comum.

Não dormi durante a ida e nem na volta, não senti preguiça ou busquei desculpas para não revistar todos os lugares.
Interessante é pensar o quanto podemos enriquecer nosso olhar quando tentamos enriquecer o olhar do outro. Não busquei criar nele expectativas ou sonhos, mas simplesmente tentar transmitir minha história nesses caminhos.

Do outro lado, ele na minha história não depositava expectativas ou sonhos e talvez por isso, fizemos uma viagem limpa e cheia de coisas antigas vistas agora com uma nova beleza. A maioria das minhas histórias naquele caminho já não mais existiam, assim como mudaram os lugares que frequentei.

E eu falava "ali costumava ser, ali acontecia, aqui era...". Percebi nesse discurso que nada mais é. Assim como eu ali não sou, eu fui. Isso é história, algo que nos referencia ao hoje e que hoje não existe mais.

A partir dali, senti que eu e ele fazíamos uma nova viagem juntos. Nenhum lugar será igual. 
Desejo assim manter abertos os meus olhos para todos os caminhos e não dormir durante os percursos, novos ou conhecidos. Algo novo pode sempre acontecer!


sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Estranhas conexões

Recentemente eu sofri outro assalto, não houve violência física (embora a ameaça já pode ser caracterizada como uma), foi na luz do dia e em horário de almoço. E, a partir de então, a enorme teia de sentidos foi se estabelecendo. Após o ato, meu corpo inteiro estava paralisado, eu assisti o rapaz ir embora em sua moto, levando apenas meu celular. 
A minha primeira reação foi: isso era esperado, ocorre todo dia, que bom que não houve nada a mais, foi só um celular, está tudo bem. 
Minhas pernas voltaram a funcionar e eu segui caminho, carros e pessoas passaram por mim, aparentemente não me viam. Eu caminhei seguindo o planejado, estava indo para o trabalho. Então, a razão foi chegando aos poucos. Voltei correndo, liguei o computador e tomei todas as medidas de segurança possíveis naquele momento, avisei a algumas pessoas e voltei para o trabalho.
Trabalhei o turno da tarde e o início da noite, calmamente. 
Cheguei em casa, retornei ligações dos familiares preocupados, tomei banho, deixei o tablet ligado no meu seriado favorito até conseguir dormir.


Dia 2
Tive uma sessão de terapia, chorei pouquíssimo para a minha surpresa, concertei um celular antigo e recuperei o chip. Retomei contatos e avisei a todos que sabiam que eu estava bem. Pelo menos, fisicamente bem.
Tive insônia, deixei novamente o tablet ligado na série favorita até que eu adormecesse. Do contrário, o silêncio e a escuridão faziam barulho na minha cabeça.


Dia 3
Odeio domingos e este não foi diferente, foi pior ainda. Chorei muito, pela primeira vez. Procurei entender o que me doía, afinal, era só um telefone celular. Procurei uma amiga pra conversar, desabafei um pouco, e depois fui assistir TV. Recebi uma ligação dos meus pais, fizemos uma vídeo conferencia com minha irmã. Conversei com meu namorado, desabafei mais um pouco, desliguei o telefone, liguei o tablet, tive insônia novamente, adormeci.


Dia 4
Havia planejado um evento com um colega de trabalho e era o dia da execução. O evento durou a tarde toda, com poucos percalços, e tudo estava bem. Tive aula de ballet normalmente e ao chegar em casa recebi outra ligação dos meus pais, só pra conferir se estava tudo tranquilo. Um sentimento confuso começa a aparecer, não conseguia identificar muito bem. Tive uma insônia maior do que nas outras noites, embora o cansaço do corpo fosse maior também, até que meu namorado viu que eu ainda estava online de madrugada no telefone e me ligou. Conversamos até que eu adormecesse. 


Dia 5
Palpitações durante o dia todo de trabalho, e só me sentia tranquila enquanto estava atendendo. A cada intervalo de atendimento, a vida real aparecia para mim, assustadoramente. Tive aula a noite do ballet e, a noite, dormi sem a ajuda do tablet ligado pela primeira vez. 


Dia 6
Entendi o sentimento estranho que começou a aparecer no dia 4 e estava ganhando força. Tinha nome, era solidão. A perda do celular me remeteu a perda de comunicação, muito embora eu nem me considere uma daquelas pessoas que passam o tempo todo usando o celular. Telefone é algo que, atualmente, nós pouco conseguimos mais viver sem. E isso doeu como um tiro ou uma facada que o assaltante poderia ter me dado. Eu me dei conta de que, durante toda essa semana, o contato que eu tive com as pessoas que eu amo foi todo feito por telefone. Tirando meu amigo que divide apartamento comigo, não vi ninguém além das relações de trabalho, e isso não foi somente essa semana. Estaremos nós ficando confortáveis diante de uma tecnologia que nos dá a ilusão de companhia? 
Isso me entristeceu profundamente. A vulnerabilidade da vida já nos coloca em risco o tempo todo, afinal, estamos lançados no mundo. E me entristece que estejamos nos deixando levar pelo conforto imaginário das mensagem de celular. 


Recuso-me a aceitar que um ladrão roube minhas companhias se ele leva meu celular. Se isso acontece, elas já se deixaram levar há muito tempo. E recuso-me a aceitar que uma mensagem substitui uma presença. Pode acalmar o coração, mas não conforta. Quero, sempre, manter meus olhos abertos para isso. Mas também quero, sempre, entender todas as situações. Como diz a oração "Concede-me, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar as que eu posso e sabedoria para distinguir uma da outra – vivendo um dia de cada vez, desfrutando um momento de cada vez, aceitando as dificuldades como caminho para alcançar a paz”.