quarta-feira, 1 de julho de 2015

Carta aos donos dos meus pertences

Caros colegas assaltantes,

eu sei que vocês não vão ler esta carta, se o fizessem seria algo bem bizarro, mas eu gostaria de externar meus sentimentos de alguma forma. Entendo que, pelo visto, eu trabalho para lhes dar o que é de vocês por direito, só que o susto que eu levei no momento que vieram buscar foi terrível. Vai ser difícil pra caramba ressignificar tudo isso, 5 minutos de contato com vocês se transformarão em uma dor de cabeça de vários dias, quem sabe alguns meses. Sem contar a dificuldade pra recuperar todos os meus documentos, que eu não sei se vocês lembram, foi a única coisa que eu pedi que deixassem. 

Eu percebi que o camarada que não muito delicadamente me "imprensou" na parede cogitou a possibilidade de deixar os documentos. Aliás, dentro da minha bolsa não havia nada que vocês iriam fazer uso, a não ser R$10,00 de resto dos R$20,00 que eu havia pedido emprestado à uma amiga para voltar pra casa pois estava sem dinheiro. Mas a bolsa era grande, eu entendo, chamou-lhes a atenção, deveriam levar, obviamente.

Ah, e o grito não foi intencional. Sei que ficaram irritados, por isso a prensa contra o pescoço, mas convenhamos, é uma reação involuntária que muita gente tem quando sente um susto. De qualquer forma, fico grata por não ter havido algo mais sério, não precisava já que eu sou mulher e estava sozinha na rua. Indefesa. Todo mundo fala que vocês poderiam ter feito coisas mais sérias, como me levar junto na moto (seria meio estranho nós três em uma moto, mas vai que né?), poderiam ter me agredido quando eu gritei porque eu fui sem noção... Ouvi dizer que, quando vocês surgem, a gente tem que ficar quietinha e ter obrigatoriamente algo de valor que compense o trabalho de vocês, se não a gente apanha. Foi compensado. Suponho que por isso vocês não fizeram mais nada. Só o meu celular de R$1200,00 que não havia nem um mês que eu havia comprado foi o suficiente. Ainda bem! Bem material a gente recupera, logo logo esse medo vai passar.

Sem contar que vocês foram os melhores da noite. Ao ir à delegacia fazer o B.O. ouvi tanta história de outros casos praticamente no mesmo horário que o meu, que me fizeram até parar de chorar e rir um pouco. Nós que estamos desse lado beneficiado da história nos encontramos todos no mesmo barco. Afinal, vocês estão do lado dos que têm menos, então nada mais justo do que vir buscar aqui o que aos olhos de vocês, sobra. Infelizmente, levam muito mais que os nossos bens. Comprometem nossa condição psíquica. Não quero entrar mais fundo nesse assunto de quem sofre mais, certo? Há uma razão pra vocês estarem buscando seus pertences com as pessoas que oferecem um acesso mais fácil. Andei sozinha na rua pra quê? Tirei o celular da bolsa na porta do prédio pra quê? Andei com uma bolsa grande que chama atenção pra quê? Estava tão óbvio. Outras pessoas até me falaram depois que agora eu aprendo. Devo aprender.

Longe de mim querer culpá-los por isso, mas em consequência desse contato com vocês eu me sinto sem ter a quem recorrer. Até entendo todos os meus parentes e amigos que dão sermão e falam todos a mesma coisa: "isso passa", "não aconteceu nada", "o que você falaria pra um paciente seu que sentisse a mesma coisa? Você precisa ficar bem", "bem material a gente recupera", "você poderia ter morrido", etc, etc. Mas infelizmente, não sinto que são todos que compreendem a minha necessidade de falar até que isso diminua e se ressignifique dentro de mim. Que saco, não é? Esse mimimi pós assalto. 

No mais, solicito-lhes, do fundo do meu coração, que não voltem por aqui. Façam bom uso dos meus pertences e fico grata por não terem feito o "mais" que todo mundo fala que vocês poderiam fazer.

Atenciosamente,

a guardiã temporária dos pertences que vocês definitivamente levaram.

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